quarta-feira, 12 de maio de 2021

Norberto Bobbio ao falar do "Poder invisível"

Inútil dizer que o controle público do poder é ainda mais necessário numa época como a nossa, na qual aumentaram enormemente e são praticamente ilimitados os instrumentos técnicos de que dispõem os detentores do poder para conhecer capilarmente tudo o que fazem os cidadãos. Se manifestei alguma dúvida de que a computadorcracia possa vir a beneficiar a democracia governada, não tenho dúvida nenhuma sobre os serviços que pode prestar à democracia governante. O ideal do poderoso sempre foi o de ver cada gesto e escutar cada palavra dos que estão a ele submetidos (se possível sem ser visto nem ouvido): hoje este ideal é inalcançável. Nenhum déspota da antigüidade, nenhum monarca absoluto da idade moderna, apesar de cercado por mil espiões, jamais conseguiu ter sobre seus súditos todas as informações que o mais democrático dos governos atuais pode obter com o uso dos cérebros eletrônicos. A velha pergunta que percorre toda a história do pensamento político — "Quem custodia os custódios?" — hoje pode ser repetida com esta outra fórmula: "Quem controla os controladores?" Se não conseguir encontrar uma resposta adequada para esta pergunta, a democracia, como advento do governo visível, está perdida. Mais que de uma promessa não cumprida, estaríamos aqui diretamente diante de uma tendência contrária às premissas: a tendência não ao máximo controle do poder por parte dos cidadãos, mas ao máximo controle dos súditos por parte do poder. FONTE:Bobbio, Norberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo; tradução de Marco Aurélio Nogueira — Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.

Lukács e a relação entre teoria e prática em Marx

Marx exprimiu claramente no mesmo ensaio as condições de possibilidade dessa relação entre a teoria e a práxis: "Não basta que o pensamento tenda para a realidade; é a própria realidade que deve tender para o pensamento." Ou, num ensaio anterior: "Ver-se-á então que há muito o mundo sonha com uma coisa da qual basta que ela possua a consciência para possuí-la realmente." Apenas tal relação da consciência com a realidade torna possível a unidade entre a teoria e a práxis. Para tanto, a conscientização precisa se transformar no passo decisivo a ser dado pelo processo histórico em direção ao seu próprio objetivo (objetivo este constituído pela vontade humana, mas que não depende do livre-arbítrio humano e não é um produto da invenção intelectual). Somente quando a função histórica da teoria consistir no fato de tornar esse passo possível na prática; quando for dada uma situação histórica, na qual o conhecimento exato da sociedade tomar-se, para uma classe, a condição imediata de sua autoafirmação na luta; quando, para essa classe, seu autoconhecimento significar, ao mesmo tempo, o conhecimento correto de toda a sociedade; quando, por consequência, para tal conhecimento, essa classe for, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento e, portanto, a teoria interferir de modo imediato e adequado no processo de revolução social, somente então a unidade da teoria e da prática, enquanto condição prévia da função revolucionária da teoria, será possível. FONTE:Lukács, Gyorgy. História e consciência de classe : estudos sobre a dialética marxista, trad. Rodnei Nascimento , revisão da tradução Karina Jannini, São Paulo, Martins Fontes, 2003, (p. 65-66).

Eller analisando Marx falar sobre religião

Os conceitos centrais no materialismo histórico são "modo de produção" e "relações de produção”. No entanto, Marx também reconhecia que uma sociedade não é uma coisa homogênea simples, mas é composta de vários subgrupos com diferentes posições nas relações de produção - diferentes papéis a desempenhar, diferentes perspectivas sobre o sistema, diferentes interesses e diferente poder. Ele chamou estes subgrupos de "classes". Nas sociedades diferenciadas em classes, geralmente uma classe tem mais controle sobre o modo e as relações de produção do que outra(s). A "classe superior" é não só mais rica e mais poderosa, mas é também dominante nas ideias e valores. Conforme a conclusão de Marx, as ideias dominantes de uma sociedade são as ideias do grupo dominante da sociedade, não em último lugar porque esse grupo controla não só a "economia, mas também o sistema educacional, todas as formas de "midia" existentes e as instituições da sociedade, inclusive a religião. FONTE:Eller, J. D. Introdução a antropologia da religião. Trad. Gentil Avelino Titton. Petrópolis, RJ, Vozes, 2018. (p. 49).

Maria Lucia Montes falando sobre a categoria "evangélico"

É certo que se torna difícil delimitar com precisão a categoria "evangélico", já que engloba um número importante de igrejas com grande diversidade organizacional, teológica e litúrgica. Na verdade, o termo é usado ora englobando o conjunto das igrejas protestantes, as chamadas congregações "históricas" assim como as igrejas pentecostais, ora referindo-se apenas às diversas modalidades do pentecostalismo, "clássico", "neoclássico" ou "neopentecostal". Assim, "evangélico" torna-se antes uma categoria "nativa", um rótulo identitário por meio do qual, no grupo disperso, se demarcam fronteiras, incluindo-se ou não determinados segmentos no interior do grupo de acordo com aquele que dele se utiliza, no constante processo pelo qual se desconstrói e se refazem identidades. Entretanto, malgrado essas indefinições no discurso "nativo", sem dúvida, no processo de construção contrastiva e relacional da identidade, visto de fora, "evangélico" remete a um conjunto de características que traçam um perfil relativamente bem definido de um grupo que engloba um número cada vez mais significativo de pessoas. E isso não deixaria de ter consequências (p. 30). FONTE: Montes, Maria Lucia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado na religiosidade brasileira. São Paulo, Claro Enigma, 2012. (p.30).

O COMPORTAMENTO DE EICHMAN

Ao ler trechos do livro de Hannah Arendt, achei o comportamento do Eichmann parecido com o do Bolsonaro, principalmente, no que se refere ao vocabulário limitado. Hannah Arendt, na obra “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”, nas páginas 61 e 62, ao analisar o interrogatório de Eichmann, relata que: “O texto alemão do interrogatório policial gravado, realizado de 29 de maio de 1960 a 17 de janeiro de 1961, com cada página corrigida e aprovada por Eichmann, constitui uma verdadeira mina de ouro para um psicólogo – contanto que ele tenha a sabedoria de entender que o horrível pode ser não só ridículo como rematadamente engraçado. Parte do humor não pode ser transmitido em outra língua, porque está justamente na luta heróica que Eichmann trava com a língua alemã, que invariavelmente o derrota. É engraçado quando ele usa o termo “palavras aladas” (geflügelte Wort, um coloquialismo alemão para designar citações famosas dos clássicos) querendo dizer frases feitas, Redensarten, ou slogans, Schlagworte. Era engraçado quando, durante a inquirição sobre os documentos Sassen, feita em alemão pelo juiz presidente, ele usou a frase “kontra geben” (pagar na mesma moeda), para indicar que havia resistido aos esforços de Sassen para melhorar suas histórias; o juiz Landau, desconhecendo evidentemente os mistérios dos jogos de cartas (de onde provém a expressão), não entendeu, e Eichmann não conseguiu achar nenhuma outra maneira de se expressar. Vagamente consciente de uma incapacidade que deve tê-lo perseguido ainda na escola – chegava a ser um caso brando de afasia – ele pediu desculpas, dizendo: “Minha única língua é o oficialês [Amtssprach]”. Mas a questão é que o oficialês se transformou em sua única língua porque ele foi sempre incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichê. (Será que foram esses clichês que os psiquiatras acharam tão “normais” e “desejáveis”? Serão essas as “ideias positivas” que um clérigo espera encontrar nas almas para as quais ministra? A melhor oportunidade para Eichmann esse lado positivo de seu caráter em Jerusalém surgiu quando o jovem oficial de polícia encarregado de seu bem-estar mental e psicológico deu-lhe um exemplar de Lolita para relaxar. Dois dias mais tarde, Eichmann devolveu o livro, visivelmente indignado; “Um livro nada saudável” – “Das ist aber ein sehr unerfreuliches Buch” – disse ele a seu guarda.) Sem dúvida, os juízes tinham razão quando disseram ao acusado que tudo que ele dissera era “conversa vazia” – só que eles pensaram que o vazio era fingido, e que o acusado queria encobrir outros pensamentos que, embora hediondos, não seriam vazios. Essa ideia parece ter sido refutada pela incrível coerência com que Eichmann, apesar de sua má memória, repetia palavra por palavra as mesmas frases feitas e clichês semi-inventados (quando conseguia fazer uma frase própria, ele a repetia até transformá-la em clichê) toda vez que se referia a um incidente ou acontecimento que achava importante. Quer estivesse escrevendo suas memórias na Argentina ou em Jerusalém, quer falando com o interrogador policial ou com a corte, o que ele dizia era sempre a mesma coisa, expressa com as mesmas palavras. Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa. Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia, mas porque se cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a presença de outros, e portanto contra a realidade enquanto tal.” FONTE: ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. trad. José Rubens Siqueira. – São Paulo: Companhia das Letras, 1999. (p. 61-62).